... Na parede: “Desde que fôramos animais as minhas pálpebras só se abrem nem por apenas sentir uma fracção do teu cheiro
Pelas distâncias e pelos locais onde poderias estar mais longe – aí te persegui
“E tudo o que já houve e das vezes em que já estive perto
“Um dia, desistirás finalmente de fugir, e – aí – apanhar-te-ei.”
A Gnaro-esfinge asfixiava por baixo de Miguelti. Morreu.
MIGUELTI, PARTE 8: POLIURETANO; O POÇO SEM FUNDO; A TRUPE DE CIRCO INQUALIFICADA OU INQUALIFICÁVEL; O CONSELHO INCOMPLETO DAS ESFINGES, E: A TRAMA ADENSA-SE.
UM DOS 7 GÉMEOS ESCARLATES (APONTANDO PARA CIMA): Vem ali qualquer
coisa!!
A MULHER TESUDA DE BARBA: Um meteorito? (OLHANDO PARA CIMA) H- ?
A trupe de circo inqualificada ou inqualificável juntou-se quase toda num aglomerado (menos alguns como o Palhaço Feito de Ferrugem, que ficou ao pé de uma das tendas) a olhar para cima, vendo o ponto de luz, que seria amarela ou azul?, que se aproximava pelo poço, mas desenhado ou projectado no tecto, aproximando-se cada vez mais; e adivinhando-se saltar da rocha, quando a sua chegada estivesse iminente e ele enfim chegaria.
O MAGO SEM MAGIA FUMADOR DE CACHIMBO: A esta velocidade, se passa
para aqui, rebenta o tecto e tudo e nós com a cratera vamos, pintadinhos de sangue entre as pedras.
4 dos 7 gémeos escarlates estremeceram e os outros 3 gemeram.
O CÃO: Então devíamo-nos pôr atrás das –
O CHEFE DE CIRCO DESTITUÍDO DAS SUAS FUNÇÕES: A MORTE VEM AÍ! VAMOS
TODOS MORRER! VERMELHO POR TODA A PARTE!! CARNIFICINA DE SANGUE!!!
O ponto de luz, amarela/azul, estava agora de facto demasiado perto. Grande parte dos membros da trupe de circo inqualificada ou inqualificável tinha decidido já, por senso comum, escapar e procurar abrigo; atrás das caravanas, por baixo das tendas, debaixo das rodas das roulottes de madeira pintadas de vermelho e amarelo dourado. Algo caía do céu que não existia, do tecto castanho cor de barro com aquelas esparsas estalactites, e ameaçava ser violento. Os 7 Gémeos Escarlates esconderam-se todos no mesmo sítio: dentro de uma caravana, algo apertados, com o Cão e o Faquir Ocidental Silencioso. A galeria da Mina, com os seus 17 caminhos enunciados em corredores, ficou, por momentos, aparentemente deserta. Ouviam-se os gritos do Chefe de Circo Destituído das Suas Funções “Vai queimar-me o bigode! Vai rebentar tudo! Deixei-o crescer durante 30 anos!!” e a voz entre eles do Homem Forte Normal, e Calmo, “Mas tem calma; vá lá, não vamos todos morrer; Olha, calma, porque eu acho que até pode nem ser nada” e o Extintor Transmutador, sem saber no que – tirando isso, a trupe de circo inqualificada ou inqualificável fez um bom trabalho de medo e prevenção, a preparar-se para o que aí vinha. Profissionais.
O cometa-meteorito vivo atravessou todo o tecto até ser do seu tamanho e o preencher todo, como uma mancha: quando chegou na sua super-velocidade, rompeu-o como uma bolha, sólida e a bola de fogo/energia translúcida descolorizou-se, na fracção de segundo em que os dois corpos passaram a descida do poço invisível e se estatelaram no chão, criando uma enorme cratera. As suspeitas eram fundadas. Miguelti tossiu imenso, sentindo os ossos do seu corpo estrondados, tentando perceber o que acontecera. Voltara ao interior da Mina, isso é certo (sabendo que nunca saíra dela), mas o choque e a queda impediam-no de formalizar mais pensamentos.: Tinha chegado (finalmente) à casa de Aquiles se ainda se podia considerar vivos depois da(quela) queda. Pensava que estava morto, ou possivelmente aleijado sem reparo possível. Não conseguia ter a certeza. As pálpebras ainda estavam coladas.
UM DOS 7 GÉMEOS ESCARLATES: Eu tinha razão!, Eu sabia! Era uma coisa que aí
vinha!
OS OUTROS GÉMEOS: Sim sim
Boa!
É isso, e tal
ya ya
Sim, isso! Etc.
O CHEFE DE CIRCO DESTITUÍDO DAS SUAS FUNÇÕES (UM GRITO ALTO MUITO PROLONGADO E HISTÉRICO): Haaaaaa!
Miguelti afastou-se – meio às cegas – do que pareciam ser folhas de metal. Eram as asas da Gnaro-esfinge, ainda embrulhadas à volta do seu corpo, em protecção. Recuperava a visão, em que lhe saíam as sombras cinzentas dos olhos, do seu olhar. Pareceu-lhe ver o corpo rachado, como um vaso, da Gnaro-esfinge, a levar uma das mãos à garganta (o outro braço estava demasiado estilhaçado para se poder mexer) e a abrir a boca e os olhos, como se estivesse a asfixiar. Como nas alturas anteriores, nos momentos antes que passara com Miguelti não dissera uma palavra, nem parecera ousá-lo. Ou seria da queda que lhe tinha impossibilitado, partida por dentro, a capacidade de conseguir emitir sons? Instantes depois, morreu da queda, ou asfixiada, com os olhos amarelos sem íris muito, muito abertos. Que estranha esfinge esta, pensou Miguelti, que o corpo era de uma liga de metal mas que se estilhaçava como vidro; e que lhe pareceu querer colocar uma pergunta, ou questões, mas nunca tivera coragem de a fazer.; Ou fazê-las. Mas Miguelti não teve tempo de pensar sequer nas exéquias fúnebres que seria impelido a fazer, por achar que seria o seu dever. Das caravanas e tendas (4 ou 5 armações) começaram a sair personagens humanas (e bípedes, e falantes) e um cão que parecia conversar com alguém, para verem o que estava na cratera, e a ele.
Tal como o Sol se transforma em Lua, e a Lua não dignifica o amanhecer; de rocha a dia, de dia a Sol. O luar fica parado na noite. Como a pedra que ganha vida.
A MULHER TESUDA DE BARBA (SEM SORRIR, MAS NEUTRA): Ora bem! O que temos
aqui?
Miguelti, a tentar balbuciar – Bluh, eu, eu... Vvim daqui (por,) de cima, caí de uma Casa do Llago do céu, vim aqui à procura, (do) – c-com os meus amigos o, ( – ) e vim aqui ter mas... – Antes de ser interrompido queria ter dito ainda alguma coisa parecida com “eu não sou mau – “
UM DOS 7 GÉMEOS ESCARLATES: Quem és tu?
UM DOS 7 GÉMEOS ESCARLATES: O que fazes aqui?
O CÃO: Quê? Uma casa? Como é que vieste de cima do tecto?
Miguelti tentou levantar-se algo de si queria dizer, agarrando o corpo partido da Gnaro-esfinge “não lhe toquem! Não lhe façam mal!” mas levantou-se, trôpego, deixando-o no chão.
O CHEFE DE CIRCO DESTITUÍDO DAS SUAS FUNÇÕES: Olá, somos a
companhia de circo A Trupe de Circo Inqualificada ou Inqualificável (!). Bem-vindo!
Miguelti olhou, e, como lhe tinha dito o homem de bigode horizontal grande, e riscos finos que lhe saíam da cara, e de cartola, vestido à mestre-de-cerimónias com um tipo de roupa que não conhecia (considerem-se as distorções temporais; a roupa pode vir de ou pertencer a um possível futuro, considerou), parecia estar perante uma peculiar trupe de circo. Além do homem que lhe tinha feito a apresentação, este encabeçava um grupo de pessoas distintas que o observava também, como uma mulher de barba com um corpo e um cabelo muito, bastante na verdade considerou Miguelti, aprazíveis, sete pré-adolescentes idênticos com peças de roupa únicas iguais para todos do pescoço às mãos e tornozelos, vermelhinhas, e, por cima, cintos amarelos de fivela, um cão branco de nariz muito recto que olhava para ele atentamente e que Miguelti convencera-se já de que o tinha ouvido falar, um homem musculado perto da meia-idade com uma cara calma, um palhaço feito de ferrugem que o observava também, atrás de todos, embora sem muito interesse, carrancudo até, talvez, um homem de cartola alta vestido como o homem do bigode mas em tons mais escuros, com mãos dentro de luvas brancas que, irrequietas, se moviam constantemente de forma peculiar, e atrás mais outros, presumivelmente também da mesma companhia, falando entre si
A MULHER TESUDA DE BARBA (PEGANDO EM MIGUELTI; AJUDANDO-SE A SAIR DA CRATERA):
Ora vamos lá, cuidado, isso agarra a minha mão, – mataste uma esfinge? Porque é que não nos contas de onde vens e qual é a tua história? Andas perdido?
Miguelti saiu da cratera ajudado pela mulher tesuda de barba, e olhou em volta – Eu...
- Os animais estão dentro das caravanas! – Berrou do nada colérico um dos 7 gémeos, que julgou perceber que o olhar confuso de Miguelti era de reprovação – Não podem andar por aí à solta, ó espertinho!
- Não, eu... – Miguelti olhava em volta – onde estamos? Em que parte da mina é que estamos? Heh...
- Estamos na parte da mina que obviamente é uma parte da mina qualquer – exclamou o director destituído da trupe de circo inqualificada ou inqualificável – e se fosse por mim não estaríamos metidos nesta situação, não é? - Disse, em tom acusatório, virando-se para o restante pessoal do circo atrás dele que observava a situação – Muito obrigado! Vê bem, rapaz, destituíram-me das minhas funções quando nos vimos metidos neste maldito buraco – quando nem sequer foi minha ideia ou culpa termos feito o que fizemos para acabar aqui!
- Não importa de quem é que foi a culpa – já discutimos isso mil vezes... – disse o cão, revirando os olhos.
- E tu? – Perguntou um dos 7 gémeos, com uma voz estranhamente acusatória e algo distorcida da dos outros – o que estás aqui a fazer?
- A Mina... parece ser um ecossistema diversificado de conceitos... – disse Miguelti, falando alto pelos seus pensamentos, para o ar, para ninguém em particular – eu? – Olhando para o gémeo que lhe fez a pergunta – eu vim com o Professor Strutermutter e o meu companheiro Vivelti – viemos à procura do Tigre Azul.
- Ha? – Tigre Azul? – Inquiriu o director destituído da trupe – não sei onde ele está. Mas... – o seu eco, de certa forma... – haaa..., parece estar em toda a parte...
E depois,
- Eu não sei bem o que é o Tigre Azul – Miguelti falava rapidamente – mas é suposto encontrá-lo nesta mina, e bem, haam eu fui separado do meu companheiro e do Professor por uma derrocada, no meio da mina naturalmente (que julgo agora que foi produzida artificialmente para nos separar), e não sei bem se a missão até se deveria manter ou manterá neste presente estado de coisa – mas não sei deles naturalmente, e acho que neste momento – Miguelti exclamava ou talvez declamava um pouco – acho que a prioridade é tentar sair daqui, hã?
- Muito bem, antes de mais – disse o palhaço feito de ferrugem, de lá detrás do grupo – nós não somos parte disto de nenhum ecossistema diversificado de conceitos porra nenhuma. Não tenho mais nada a dizer, aliás – e calou-se.
- Não te falta nada? – Perguntou o mágico sem magia fumado de cachimbo, amável e sorrindo.
- Que...? – Hei, dê cá essa porra! – Disse Miguelti irritado, olhando para a sua sacola nas mãos do mago sem magia fumador de cachimbo – obrigado – disse, voltando a colocá-la por baixo da capa.
- Sem problemas – respondeu o mágico, sorrindo muito.
- Ora...
- Cala-te! Eu é que falo – Disse o director da trupe de circo destituído das suas funções, cortando a mulher tesuda de barba de falar – O Tigre Azul. Andas à procura dele, é?
- Ando – respondeu – Andávamos. Pelo menos. Depois de tudo o que tenho visto, não faço ideia.
- Há quanto tempo é que estás aqui na mina? – Perguntou o cão.
- Pff, nem eu sei – disse, revirando os olhos. A trupe de circo observava-o toda, atentamente. Súbito Miguelti percebeu que estava demasiado perto da cratera que ele e a Gnaro-esfinge tinham criado – há umas horas? Quase um dia? Lá em cima era de dia. Se há distorções de espaços e corrompimentos de matéria, também é possível que – mas como é que tu falas?
- Vai-te foder – respondeu o cão, e virou-lhe as costas.
- Heh. Se andas à procura do Tigre Azul, tu ao menos tens uma missão, um objectivo – não – continuou o director da trupe de circo destituído das suas funções –; nós, nem isso. Considerarás que este sítio é peculiar – e sem esperar sequer pelo assentimento de Miguelti – e, considerarás também que o Tigre Azul possa ser, precisamente, o causador desta estranha peculiaridade?
- Considero. – Respondeu Miguelti prontamente – Se não o responsável, pelo menos um dos causadores. Que é o mesmo que dizer que provas concretas da sua existência ainda não encontrei; a bem dizer, nenhumas, sendo que elas podem ser todas no que toca à Mina, ou estar por – espalhadas por toda a parte,, por todo o lugar. Mas – esbracejando –
- Olha – disse um dos gémeos a outros dois – está a esbracejar como um idiota.
- Não sei se estou a gostar do paleio deste gajo – considerou um dos outros 7 gémeos, desconfiado, olhando Miguelti de lado, com as mãos nos bolsos. Os outros gémeos assentiram com o mesmo trejeito facial.
- Ignora-os, pediu o director da trupe destituído das suas funções, Por agora;, em relação ao Tigre Azul, tinham algum plano para chegar ao cume dessa montanha? Hum? Para transpor esse meridiano?
- Hã? – Perguntou Miguelti. O mágico da cartola e luvas brancas atirava com uma mão um baralho inteiro de cartas ao ar, ao mesmo tempo que o palhaço de ferrugem tinha um reflexo de vómito e, dobrando-se, regurgitava as cartas pela boca, deitando ao mágico um olhar furioso. As cartas iam desaparecendo no ar. Miguelti reparou também que a enorme galeria onde se encontrava possuía, além das tendas montadas e deixadas no chão e jaulas de animais e caravanas em tons de beringela e tomate, com rodas douradas e freios azuis eléctricos bem como vermelhos, 17 caminhos, aberturas nas paredes da galeria, que contava, partindo em todas as direcções. O silêncio de Miguelti alertou o director do circo, destituído das suas funções, bem como os seus olhares observadores, para os seus pensamentos.
- Estás a questionar-te para onde vão aqueles caminhos?
- Não tenho nenhum plano. – Respondeu – Não tínhamos. O meu plano, à falta de plano, é encontrar os meus amigos, possivelmente (onde está) o Tigre Azul, e sair daqui a tempo para a sopa – uma sopa qualquer, sem estilos complexos de couve a boiar na aguinha. Hã? Percebe do que eu estou a falar? Caí de uma casa suspensa num lago abraçado a uma esfinge, obrigado. E sim, estava a questionar-me para onde irão aqueles caminhos.
- …Ha… – disse o director da trupe de circo com um gesto de mão em arco a abarcá-los, caminhando para o centro da galeria bem iluminada. E a trupe de circo deixou-o passar, abrindo caminho – Vão dar a sítios diferentes. Vão todos dar a sítios distintos. Mas o mais provável é que acabes sempre a regressar ao mesmo sítio – que – fez um gesto horizontal em bruços com os braços, no centro do peito – será aqui.
UM DOS 7 GÉMEOS ESCARLATES: Estou a... não estão a ouvir o bater de asas...?
- Já alguém da vossa companhia tentou explorar os caminhos. Ver onde eles vos levam?
- Ah, sim. – O director demitido das suas funções largou o bigode e virou o seu olhar para o caminho vermelho-sangue, pulsando ao longe. Com tiques de inconstância. Pulsando apenas, pulsando, não se distinguindo dos outros corredores, dos outros caminhos, cada um com as suas promessas de diferença. Os corredores. – Alguns membros nossos, da nossa companhia. Quatro. De talentos valiosos e ímpares, únicos, com um legado, repara bem. Que desapareceu neles. Que acharam bem arriscar as suas vidas, e as da companhia – bem assim... – Nessa exploração, no intuito de encontrarem uma saída. Claro que morreram todos, menos um.
- Quem?
UM DOS 7 GÉMEOS ESCARLATES: Oh, ali, olhem ali! São as esfinges!
E então as esfinges invadiram a galeria perdida na vastidão insondável da Mina. Um mar alado de asas de diferentes cores, corpos reluzentes e nem todos sólidos, sons metálicos e ferozmente etéreos, estilos de voo díspares por cada mancha no ar, criando círculos, saindo dos corredores e do tecto que parecia mais uma vez abrir-se. Caíam como lágrimas cibernéticas, pensou Miguelti. Numa clara corrupção daquilo que poderia pensar. Como elementos de códigos binários eclipsados, no seu padrão de voo, pela própria fúria da natureza. Inerente das coisas imprevisíveis vivas, [mesmo] de verdade. As sombras das asas e os corpos envolveram toda a companhia, que só conseguia olhar para o tecto, em espanto. Seriam mais de – ?, mesclando-se, comunicando por, talvez, padrões de cores reflectidos nas suas penas, ou folhas metálicas das protuberâncias que lhes saíam das costas, feromonas processadas artificialmente, questões dúbias em forma de cumprimentos com os restolhares de asas metálicas, cerâmicas, orgânicas, eléctricas a anunciar as suas chegadas. Olhando para baixo. Criando correntes de vento improváveis. E os humanos temeram pelas suas vidas; em risco de repentinamente se tornarem memórias – subitamente deles um esquecimento, ali, onde as Esfinges voavam em círculos e eram esfinges, e eles viam as criaturas.
Estava reunido o sétimo concelho das Esfinges, como referiu a Dravo-Esfinge, de bastão e bigodes de pele vivos que se contorciam acima dos lábios e pendendo do queixo, com as vestes instáveis a fundirem-se com a sua própria pele, bípede, com patas de leão brancas, em pose aristocrática depois de ter verificado, pessoalmente e com outras 3 esfinges, o corpo da Gnaro-Esfinge que rodearam protegendo-o de olhares humanos, e erigiu as bancadas que afloraram do chão e do tecto, e da conjuração das outras esfinges que voavam pela galeria, que toda ela circularam, num anfiteatro vertical onde a companhia de circo e Miguelti ficaram, minúsculos, na iminência de prestarem provas, vibrando os corredores nas suas respectivas cores e cheiros, e as centenas de seres alados – algumas assomaram dos corredores, visto que as suas asas eram apenas decorativas – e Miguelti? Agarrou na faca que tinha na sacola e sentiu a maçã branca que tinha por despoletar, e como se o diabo fosse, de repente, real?, teve medo. Eram as rajadas de vento que faziam a sua capa esvoaçar em todas as direcções e o seu cabelo desalinhar-se, com o medo de ver a Hetero-Esfinge – Lá estava ela sentada perante si como as outras esfinges presentes, tão egípcia, carrancuda como sempre, num dos lugares laterais do anfiteatro vertical, com as bancadas altas, elevadas. Talvez também. A Dravo-Esfinge ainda não se apresentara e Miguelti ainda não sabia o seu nome. Mas levantava voo agora da cratera onde estava o corpo estilhaçado da Gnaro-esfinge e voava para o centro do púlpito, virado para os humanos, alguns metros acima do solo, sem asas. Virou-se de frente e de cima do púlpito perguntou.
- O que aconteceu Aqui/Quem matou a Gnaro-Esfinge
As esfinges agitaram-se.
- Estás a puxar a sorte! – Disse-lhe o Mágico sem magia aos gritos, em névoas púrpura perante as mãos que faziam cornos, fazendo – seria ele? – Nascer géisers entre o chão e as pontadas afiadas das paredes de várias cores e vapores, verdes esfumados, cinzentos-pérola, e a Dravo-Esfinge continuava com os seus robes azuis de pele observando Miguelti, que via as palavras formarem-se como uma nuvem à sua frente numa explicação incoerente; mas como fazê-lo,, como estranhar que o ar tenha ficado tão seco de repente, como puxar a sorte e ousar as palavras, a Hetero-esfinge, ouvi-a dizê-la, questionava com ondas de chamas em linhas saindo dos seus olhos, QUAL É A
RESPOSTA, e outra esfinge perguntava um pouco para si mesma com cara de ave Queres mais pistas, algumas pistas mais para teres a certeza da tua resposta e outra esfinge debitava números em sublinhados físicos azuis à frente da testa como forma de comunicação 74 56 2 15 16 24 9 enquanto a sua cauda de leão baloiçava atrás da bancada e outras esfinges apenas olhavam para Miguelti e muitas titubeavam perguntas questionavam frases ou interjeições físicas decidiam que inquirição deviam fazer e como um banho de ácido numa tina de porcelana transmutava-se a face da gemiesfingeni em tons ultravioleta de uma luz pardacenta pulsando do seu interior, quase sólida arranhando, devagar, o estrado com as suas garras na sua forma peculiar de gestualmente colocar perguntas, e ainda a esfinge Actium virava as suas quatro faces ante o seu corpo humano sobre o sangue eléctrico azul que passava pelas suas veias translúcidas, acabava essa visão encadeante nas patas de um leopardo escondidas atrás de uma túnica branca, e numas simples asas castanhas, fazendo perguntas com cada uma das suas quatro faces, sim, mas que Miguelti não ouviu. Pulsando os sonos ao ritmo das batidas do sssangue que lhe passeava a diferentes velocidades pelos seus vasos, Outra esfinge apenas cofiava a barba branca com as suas patas insectóides e hesitava entre, com a cauda, colocar a maior questão de todas, molhando-a entre as pálpebras dos olhos e daí retirando todas as cores que precisava para pintar na tela deitada na bancada a sua imagem inquiridora, mas havia tantas, e esta era tão indecisa, a esfingineta. A esfinge das plumas escondia-se entre as suas próprias asas brancas, de penas grossas e longas, e parcas; não ousava ter a coragem de matar alguém pela resposta errada a uma das suas questões, e a seu lado a Fª esfinge deixava cair o seu longo cabelo verde, vaidosa, sobre o seu dorso de leoa, sorrindo apenas, enquanto que a esfinge dos montes Urais desconfiada estalava o bico em descrédito e impaciência. Virava as costas a Miguelti a Esfinge de Harpa. A sua face sólida feminina de pedra concentrava-se, escondia-se por trás dos seus robes castanhos. A música inquisitiva que saía da sua harpa não era para ninguém ouvir. As suas asas majestosamente grandes abafavam o som. E nem todas as esfinges se sentavam. Algumas mais tradicionais, com a sua fisionomia dividida entre forma humana, felina e aviana sentaram-se directamente em cima dos estrados. Outras que esfinges eram aquelas que desenhavam padrões translúcidos no ar. Metálicas, de máscara algumas, com exo-esqueletos de pele ou cobre, planavam. E também elas se sentaram. Todas as esfinges se sentaram, na verdade. O conselho das esfinges estava reunido, e
- O que aconteceu Aqui/Quem matou a Gnaro-esfinge
a pergunta ressoou por todo o salão.
O CONCELHO DAS ESFINGES
Ora bem. Estão uma data de esfinges no mesmo lugar que ficou sem tempo. Ou som, um som como não outro som – que se poderia intrometer, não o fez. Todos as procuravam e nunca as encontraram. Estas filhas do céu, feitas pelo mosto e lama das fundações das antigas montanhas. Mas isso foi ainda antes. O mundo não era o mundo, os sonhos resgatados aos crimes da vida ainda não se escreviam, se narravam, ou explicavam. Eram os mistérios encerrados dentro do segredo; evoluídos para os seus corpos colocarem eles próprios mais uma questão, e Miguelti ousou falar
- Não fui eu. Ela agarrou-me, e caímos. Quando me levantei estava morta.
- Foi em legítima defesa! – Gritou o director destituído das suas funções visivelmente agitado. A mulher tesuda de barba escondera-se entre os sete gémeos escarlates que já tinham saído dos seus esconderijos, menos amedrontados, ou apenas com o desejo superior de não quererem perder os acontecimentos em primeira mão. Que, esses, olhavam todos para cima, fitando as esfinges de bocas abertas e braços caídos numa tranquila forma de estupor. O mágico enfiara as mãos nos bolsos.
Os olhos da Dravo-esfinge escondiam cavalos-marinhos nas suas íris. Não era?
- Como te chamas?
- Miguelti – disse, olhando para a Dravo-esfinge e os seus robes de pele maleável. Será que o podiam matar por dar uma resposta errada, mesmo, mesmo não sabendo eles próprios a resposta? E como seria isso possível
- O gajo está a mentir! – Berrou um dos sete gémeos escarlates – o nome dele é José Matias!
Alguns segundos depois do corpo do rapaz ter explodido numa mancha rosa de carne, ossos liquefeitos e sangue, o terror instalou-se de imediato na trupe de circo e seguiu-se uma cacofonia descontrolada com o cão em estado de choque parado nas suas quatro patas a balbuciar, Mas então meu, mas então meu os seis gémeos escarlates a correrem de um lado para o outro esbracejando ou tentando agarrar em gritos o líquido espesso cor-de-rosa que escorria pelo chão e fora, momentos antes, um dos sete gémeos escarlates, o director tentava agarrar a mulher tesuda de barba que não se sabia muito bem o que pretendia fazer, hesitando entre o fugir e o, enfim, o palhaço de ferrugem gritava contra a própria companhia insultando-os pela sua estupidez, demonstrado assim a sua peculiar forma de revolta ante a morte de um colega, e o mágico perdeu toda a sua magia e afastou-se do líquido que escorria em direcção aos seus sapatos, enquanto que o Homem Forte, Normal e Calmo fugia, com as mãos à frente da cara, a chorar, para as caravanas para não ser de novo visto.
A esfinge Desarragaio tinha como poder tornar-se numa qualquer névoa indistinta com um pungente sabor a leite, que – acreditando-se – envolveu mesmo todos os ainda presentes, e, sendo forçados a inspirá-la, acalmaram-se. A questão que colocou? Deitem as vossas respostas ao vento.
Miguelti arranjou forças para dizer: Chamo-me mesmo Miguelti. Porque... –? Mas – olhando a Dravo-Esfinge nos olhos de íris pentagonais – bom, porque é que o mataram?
O corpo da Gnaro-esfinge continuava, permanecia, morto, e as quatro esfinges que o guardavam não voaram ainda.
A ESFINGE NIHILISTA: Considerava-lo real?
- Real? Sim – Miguelti olhou de frente para a réptil feminina de escamas translúcidas quando sobrepostas às ondas ultravioleta, e parecia que a Mina seria fértil nesse tipo de radiação, pois via-se o sangue bioelétrico nihlista correndo pelas suas veias de cerâmica. “Ele era real e admitir o oposto é admitir que estou preso numa irrealidade, não? Tão real quanto eu –”
As esfinges murmuraram entre si. Os membros da trupe de circo, acalmados pelos vapores relaxantes, decidiram sentar-se atrás de Miguelti, numa roda, e ouvir o interrogatório que o concelho das esfinges começara a fazer-lhe e continuaria. Miguelti ficara com público, olhando para trás, e sentiu-se – agrilhoado por uma inconstância do destino. Estava preso às expectativas de ambas as partes e ao rumo – pré-determinado? – dos acontecimentos. “O filho da puta”, pareceu ouvir um dos seis gémeos escarlates, atrás de si.
A Dravo-esfinge saiu do púlpito e dirigiu-se, caminhando no ar, até à cratera protegida onde o corpo estilhaçado do que anteriormente fora a Gnaro-Esfinge se encontrava. De mãos atrás nas costas, os seus robes fluindo com padrões alternados, evocando as listas de animais, símbolos esotéricos, ou estilizados, letras em diferentes alfabetos, talvez palavras? Pedaços de retratos, paisagens esbatidas pelo fumo ou nevoeiros, objectos simples. Meditava, suspensa no ar, olhando para baixo. “Devia ser a amante dele”, disse um dos seis gémeos escarlates, que logo foi puxado por uma força invisível, que o agarrou até ficar uns centímetros suspenso no ar e lhe esganou o pescoço até este se deixar de debater, estrangulando a garganta até se ouvir um perceptível, embora não muito alto crack, sendo depois pousado onde tinha ficado, mas desta vez já um mero objecto, um nada, carne e ossos;, e a sua morte não foi desta vez contestada pelos gémeos além de um gemer colectivo de desespero assustado por verem um seu irmão morrer, partilhando que o momento era solene demais para uma piada idiota daquelas. Levantaram-se todos os gémeos que estavam sentados, e desajeitadamente, apertando muito os lábios e de olhos quase fechados, transportaram o corpo do seu falecido irmão pelos braços, virilhas e pernas até atrás de uma das caravanas, onde o deixaram cair com um baque, esgotados pela força dispendida. A esfinge finalmente perguntou a Miguelti:
- Onde encontraste a Gnaro-Esfinge?
- Encontrei... – Olhou para baixo, como se fosse necessário um raciocínio – e era de facto, convenhamos, como explicar o modo como a encontrou, e como lá chegou? – Encontrei-a na Casa do Lago.
Um murmurar inquieto percorreu todo o concelho das esfinges(?). A trupe de circo inqualificável ou inqualificada olhava para os lados, não compreendendo as razões desses murmurar, inquieta. Ainda assim, as esfinges nada lhe perguntaram directamente.
- Encontrei a Casa do Lago quando fugia da Hetero-esfinge com um homem chamado Tupac – olhou para a Hetero-esfinge que, ao longe, nos últimos lugares do púlpito, relativamente gigante, aparte a energia amarela que saía dos olhos e a sua permanente expressão egípcia de raiva, não teve qualquer reacção – depois de ter – tocado numa pedra. Encontrei a Casa do Lago suspensa no céu, era uma casa enorme. Muito;, a Gnaro-esfinge estava lá dentro. Não me apercebi... dela a início. Mas depois vi que me seguia. Sem me dar conta, agarrou-me, levantou voo, em direcção ao... – Estremeceu um pouco de olhos bem abertos, estaria, muito provavelmente, a reflectir nas memórias da queda pela primeira vez – aqui ao chão, de volta à Mina. Embora – saiba que nunca tenhamos saído dela. Fomos em direcção ao chão e estatelámo-nos. O corpo dela salvou-me. Embrulhou as suas asas em redor de mim para me proteger. Foi isso...
Ora bem, como as esfinges murmuravam. Mas pouco. Quase desinteressadas, algumas, pelos seus murmúrios umas com as outras? Não. São assim as esfinges. A Dravo-esfinge tomou a palavra.
- A Casa do Lago. Esse é um lugar que julgávamos não existir, até à Gnaro-esfinge ter partido. Como era a casa no Lago?
Miguelti procurou explicar o gigantismo da casa, as suas paredes abertas e salas dando para o céu, a casa a ser habitada pelo vento em ar, e nuvens abaixo de si ou ao mesmo nível, a ideia de que fora feita para ninguém humano, ninguém esfinge nem ninguém em concreto, e que a ter de existir não teria sido erigida, construída, mas encontrar-se-ia ali por outros meios. Ainda assim, uma descrição completa detinha-se na barreira das palavras. Não falou mais quando julgou que acabara. Foi como foi.
A Dravo-esfinge afastara-se, olhando ainda, enquanto o fazia, para o corpo da Gnaro-esfinge, e voltou ao púlpito.
- A casa do Lago... – reflectiu – a Gnaro-esfinge fora-se embora, dizendo que a encontraria. Como nunca mais voltou, julgámos que o teria conseguido. Mas nós –? Nunca a encontrámos. Nem à Casa do Lago, nem a ela. Pergunto-me se um dia terá tentado voar em direcção ao céu...
- Ou fora apanhada e lá deixada? – Perguntou Miguelti – parecia-me a mim que ela tinha uma relação de obrigação para com aquele lugar. E que já estava lá há muito, muito tempo –
- Não tempo suficiente – respondeu-lhe a Dravo-esfinge – Mas, suponho que talvez até uma esfinge enlouquece. Suporei apenas, essa é uma resposta para qual esta esfinge possa formular uma questão satisfatória – olhou em direcção ao púlpito, não para procurar alguma esfinge que a soubesse, mas sabendo que todas eram impotentes para conhecer os mistérios de si próprias. Uma esfinge pediu a palavra.
- Peço a palavra – era a Esfinge Ehnerjarium. – Miguelti. – Drapejou vocalmente, com os seus longos cabelos em madeixas apanhados num rabo-de-cavalo por uma outra madeixa sua, e os olhos saídos das órbitas, sólidos, lisos e amarelos – Disseste que fugiste até chegares à Casa do Lago, sozinho. Mas que procuravas tu, até teres encontrado a Hetero-esfinge? De onde vinhas?
- Oh, foda-se – disse o director de circo destituído das suas funções.
- Procurava... – disse Miguelti, olhando para trás para se certificar quem tinha dito o que acabara de ouvir, antes de continuar – Com os meus amigos? Vivelti e o Professor Strutermutter – o Tigre Azul. Mas perdemo-nos, Perdemo-nos na Mina. Vim de lá de fora, de fora da – estamos – em 1908
Um dos cinco gémeos sentados cuspiu sem se mexer para a capa de Miguelti, em desprezo absoluto. Desapareceu no momento seguinte. Agora os gémeos soltaram gritos de choque de novo, viva e raivosamente, berrando e levantando-se todos e apontando punhos em braços esticados na direcção do concelho de esfinges enquanto pontapeavam o chão e o ar?, andaram até aos círculos enquanto protestavam de todas as maneiras que encontravam. Alguns ousaram pegar em pedras no chão para as mandar para o concelho, mas acobardaram-se no último momento, ainda assim indignados e furiosos. Também eram só quatro. Rapidamente a ignorância de todos os outros presentes no salão da Mina remeteram-nos ao silêncio.
A esfinge da Indonésia ausentou-se. Elevou-se no ar sem asas, a sua face um cubo acreditado, movimentando-se, e ao levantar voo a Dravo-Esfinge – pareceu suspirar? – Dirigiu-se directamente a Miguelti.
- A Gnaro-esfinge? Uma renegada – Miguelti abriu a boca – Sim. Fugiu de si da sua raça e do seu credo. Não saberemos se fugiu de si própria? Quando?; Como, mas a sua morte ainda não era esperada. Ainda é uma verdadeira catástrofe. Ainda era filha de si mesma. E de nós – as esfinges tinham entrado todas num padrão de entendimento imperceptível aos humanos – também
A Dravo-esfinge virou-se de costas e elevou-se ainda novamente no ar, entre correntes de ar frio e um enorme anfiteatro onde as esfinges observavam os humanos, e os humanos viam as esfinges., para conferenciar com as suas consortes, que distorceram o som por meio do vibrar das guelras da Esfinge do Reino das Neuroses. Enquanto as esfinges conferenciavam (e em tempo normal parecia que durava há mais de algumas horas, uma hora e meia seguramente, Miguelti teria consultado o seu relógio mas este, não é que não funcionasse, mas parecia mudar de horas arbitrariamente, rodando os ponteiros à sua velocidade regular. Bom. Não funcionava mesmo.), e depois de toda a companhia ter estado a dar voltas à galeria, ou a dar pontapés nas pedras do chão, ou a conversarem frases bastante monossilábicas uns com os outros, enquanto se agachavam e olhavam para o conselho de seres flutuantes com caras severas (algumas delas nem sequer sólidas) e algumas asas de padrões e formatos quase amedrontantes, com o cão farejando, aqui e ali, os pés e pernas da companhia e de Miguelti, ou alguma pista, em silêncio, um dos quatro gémeos escarlates começou a exaltar-se com gestos tensos e em forma de arco, acabando por juntar Miguelti e uns quantos da companhia de circo para ouvirem o que tinha para dizer, num círculo que convocou com os seus gestos frenéticos e as suas caras exasperadas.
- Olhem lá. Nós vamos deixar que elas passem em claro? – disse, olhando com uma cara de desprezo profundo para todos os lados, para ninguém em particular, dentro do círculo.
- Passar em claro o quê, de que é que estás a falar? – Perguntou a mulher tesuda de barba, com um olhar reprovador e furioso do director da trupe de circo destituído das suas funções.
- Do que é que estou a falar? – Indignou-se, falando baixo num suspiro ríspido quase cuspido – Do que é que achas? Não, espera, vamos lá ver a ver se percebemos bem do que é que eu estou a falar. Agora de repente, oh não sei, a morte – e agora num sussurrar rosnado – de 3 irmãos meus às mãos daquelas putas?!
- Calma, cuidado – disse o mágico, torcendo as mãos.
- Cuidado? Cuidado? – Respondeu outro dos quatro gémeos no mesmo tom, que furara à força para entrar no circulo de cabeças – Essas gajas rebentaram, aniquilaram, e provavelmente teletransportaram para o meio de uma estrela os nossos irmãos, e tu queres que eu tenha calma, ou cuidado, minha besta de golpes de mão atrasada mental da puta que te pariu? – Concluiu, já completamente possesso, terminando num grito.
- Nós já estivemos a falar sobre isso – disse o cão, revirando os olhos – elas são esfinges. Não podes fazer nada em relação à morte dos teus irmãos. Elas rebentam contigo, ou destroem-te, evisceram-te, ou pior. Não me meto nisso – virou-se e saiu do círculo, por entre as pernas do mágico.
As esfinges, dentro da sua esfera de vento opaco, continuava invisíveis, e não parecia que sairiam dali tão cedo para tomar qualquer tipo de decisão.
- Além de mais, nós estivemos a pensar, e pensámos que podíamos ir buscar o Extintor Transmutador para se transformar numa arma mata-esfinges e dar cabo delas uma por uma, num feixe, assim como... largo, todas de uma vez.
- O Extin...?
- O Extintor Transmutador não é uma coisa que possa ser usada assim sem mais nem menos, vocês sabem isso – Respondeu o director da trupe de circo destituído das suas funções, cortando a palavra a Miguelti – vocês sabem bem onde o arranjámos, sabem bem os problemas que podemos ter com – não acham que já temos problemas a mais? Já perdemos três valiosos membros do nosso circo – observou expansivamente, parecendo exagerar, abrindo os braços em arco para um maior efeito dramático – vamos fazer o luto como deve ser, ninguém sairá das caravanas durante três dias inteiros! Sacrifique-se ritualmente um dos animais do circo, nenhum preço é demasiado elevado! Amarremo-nos às rodas das caravanas como se a roda da fortuna elas fossem e subjuguemo-nos à fatalidade triste que sobre nós se abateu! Aumente-se o salário a todos os trípletes, ou mais, de todos os circos que tive, tenho e terei a meu cargo! Fogo! Quão mal me sinto e tudo o mais, hã? Hã? – Dando palmadinhas encorajadoras nas costas de dois dos gémeos tremendamente carrancudos.
Mas os gémeos não tiveram tempo para ponderar ou aceitar a oferta do director da trupe de circo destituído das suas funções, uma vez que a reunião das esfinges parecia ter terminado, e a esfera de ar e vento – apenas opaco com a visão do seu movimento passageiro – desaparecera, e com ela o púlpito e as bancadas. E agora todas as esfinges pairavam, em ordens e padrões não identificáveis pelos humanos que as observavam, à frente deles, acima e relativamente distante das suas cabeças, aproximando-se porém, sem se mexerem. A Dravo-esfinge, como esperava Miguelti, comandava, mesmo não sendo nenhuma chefe, esta hoste de seres que, há dias atrás, Miguelti teria visto com um espanto inqualificável, mas que agora, num misto de temor e positiva ansiedade, apenas dava como consequência esperada de outros anteriores actos.
As esfinges eram encabeçadas pela Dravo-esfinge. As mais afastadas iam voando para longe, dissolvendo-se na escuridão que Miguelti sabia pertencer a um tecto, ou por um dos dezassete corredores, caminhado ou voando rente ao chão, com as asas, ou as mãos descarnadas, ou as suas vestes ondulantes. Algumas deixavam várias confluências de espíritos sem boca, que, sem as suas progenitoras, não resistiam muito mais do que meros momentos, e desapareciam também no ar, sem emitirem um som. A trupe de circo entretanto, conjurada pela imagem das esfinges, saía entretanto das caravanas rijas e decrépitas, ainda de bocas abertas, vendo as esfinges a partirem, como deuses. Algumas perguntariam, não poderiam também levar-nos com elas? Já estamos aqui há tanto tempo. Mas também sabiam que as esfinges não seriam deuses situados a um plano superior ao dos mortais, apenas criaturas diferentes, e seria por isso que estas os ignoravam. Mas não ao rapaz que viera do topo do tecto da Mina, o rompera sem deixar qualquer marca visível, num grande estrondo, e, como um meteorito, se estatelara abraçado a uma dessas criaturas – que ficou demasiado estilhaçada para poder viver. E no centro, a Dravo-esfinge, com as esfinges atrás de si a olharem os humanos de cima, voando, batendo as asas, com os olhos solenes, opacos, com criaturas negras presas dentro das íris, falou e disse, para a trupe de circo inqualificada ou inqualificável e Miguelti, que, esperando a decisão, acariciava a maçã branca dentro da sua sacola –
- Tomámos uma decisão.
- Ai sim? – O palhaço de ferrugem observava agora com algum interesse o desenrolar dos acontecimentos, e cuspia no chão ocasionalmente.
- A morte de uma de nós é algo incomportável e incompreensível.
- Só as esfinges morrem sem saberem porquê – observou o palhaço.
O mágico, pondo a mão no ombro do palhaço feito de ferrugem e com algum nervosismo na voz: - Cuidado, cuidado.
- O que não podemos compreender como uma resposta deixamos como dúvida para vocês próprios a descobrirem.
- Parece-me fazer sentido... – Miguelti.
- Ordenamos-te assim que saias daqui e desta Mina, não tentando mais encontrar o Tigre Azul. A saída é por aquele túnel –
- Espera lá espera lá, wow, espere! – O director da trupe de circo destituído das suas funções trazia consigo um extintor vermelho na mão direita e passava agora para a frente do grupo – então mas como é isto? Nós estamos aqui – vocês sabem há quanto tempo, e nem um tipo passa por aqui para ao menos irmos fazendo uns espectaculozinhos! – E agora este badameco chega cá, e só porque desculpem imensamente a expressão vem uma esfinge morta do tecto deixam-no sair assim, sem mais nem menos? Estás aqui há quanto tempo, hã? – Virando-se para Miguelti – Uma noite? Nem sequer uma noite!? Lá porque o tempo passa de maneira diferente aqui dentro –
- O rapaz está aqui há algum tempo e é tempo mais do que – começou a Dravo-esfinge.
- Suficiente – concluiu a Esfinge Caída, deixando pingar alguma saliva do seu nariz húmido de bode –; mas, querendo, e será na verdade aceitável, pois alguns perigos ainda espreitam na Mina antes da saída, um grupo de voluntários poderá ser formado para o acompanhar
Sem estranharmos o porquê de uma esfinge ter interrompido a outra esfinge que era porta-voz destas, nem o fim abrupto do diálogo directo no meio desta conversa (o que se seguiu foi alguma cacofonia produzida por todos, com ideias de sairem e se soltarem daquela caverna onde estavam presos havia já algum tempo), foi formado um consenso de que, sim de facto um grupo, claro, deveria ser formado para seguir o rapaz idiota que já tinha indirectamente causado a morte de parte da equipa de equilibristas e ginastas da trupe de circo, mas por quem e como, e nenhum dos gémeos quis ir, o Homem Forte, e Calmo, não voltara mais da sua caravana e o director estava mais do que disposto a ir, agarrando fielmente o extintor vermelho numa das mãos e batendo de vez em quando o pé no chão para reforçar um argumento mais aceso com algum dos outros membros que, no passado, já tinham estado sob as suas ordens directas. A mulher tesuda de barba fez questão de afirmar prontamente que não sairia dali coisa nenhuma nem mesmo se lhe pedissem com algum ou muito jeitinho, uma vez que a própria reflexão da ideia estava fora de questão: o seu lugar, dizia, como forma de disfarçar o terror absoluto em relação ao sítio onde se encontrava e que já tinha reclamado a vida de tanta gente da trupe, era com os seus companheiros de circo. O mesmo sentiam os gémeos, aliados ao rancor pelo assassinato que causara a morte dos seus irmãos, e o mágico, mas a curiosidade deste venceu-o, e aceitou fazer parte de qualquer grupo que eventualmente se formaria, além de que confiava no rapaz e na sacola que este trazia consigo. O palhaço disse “Porra, oh não, eu não! Porra!” Mas foi a primeira escolha de Miguelti para o acompanhar e as esfinges convidaram-no a aceitar o convite que o tornou de imediato irrecusável, fazendo com que os protestos e rancor do palhaço feito de ferrugem culminassem num estupendo ataque de trombas.
- Eu amo-te – disse a mulher tesuda de barba, desprendendo-se dos ombros do mágico e largando o beijo, afectuoso e apaixonado, que ambos deram como despedida, o mágico quieto, a mulher tesuda de barba aproximando-se, dando o beijo fechando os olhos, pressionando os lábios um pouco mais para garantir a importância daquele beijo em específico, e depois soltou-o e abriu os olhos apenas um pouco depois, afastando também as mãos do ombro do mágico, que, abrindo os olhos devagar depois de afastar os seus lábios da mulher que amava, virando-se imediatamente para trás, perguntou para ninguém em particular em voz de valente, Onde está o extintor? O director da trupe de circo destituído das suas funções, no meio da estática da conversa disse de novo Também vou!, Perdendo-se a sua voz e o seu pedido entre toda a conversa, e Miguelti, que estava ao pé dele, apenas conseguiu assentir com a cabeça antes de voltar a ouvir todos os pedidos e recomendações que o resto da trupe de circo lhe dizia.
- Parece que está tudo então – Disse a Dravo-esfinge. Uma esfinge sem nome nem boca soltou um vibrar da sua face esférica e perfeitamente lisa em forma de – estando o grupo formado podem ir, de forma imediatamente –
Uma vaga de água invadiu a caverna. O palhaço de ferrugem pôs-se atrás de Miguelti, que por sua vez foi ultrapassado pelo director de circo destituído das suas funções que ergueu a mão no ar com o braço e um dedo esticados e disse, em tom triunfante, “Vamos lá, vamos lá!”, num entusiasmo a que ninguém nunca achara graça. As esfinges odiaram Miguelti e puseram-se, pairando, as que ficavam, atrás do grupo – ou teria sido o próprio salão que – e Miguelti sentira que ficara, também, ali tempo demais.
- Sabem – disse para a companhia de circo atrás dele, não se virando para trás – eu só quero é encontrar o meu amigo e ir-me embora daqui.
- Não mais te será permitido tentar encontrar o Tigre Azul. O caminho estará certo à tua frente: vais chegar Ao Fim da Mina. Ao seu reduto final. Aí, encontrarás os meios que precisarás para te levar de volta à superfície. Bem como, supõe-se, a sua completa destruição, ou transformação. Seguirás pelo túnel ocre. Qualquer caminho que depois sigas será indiferente até chegares ao Fim. Estás por nós encarregado e autorizado a destruíres também a Mina; se o conseguires – Disse a Dravo-esfinge. O palhaço carrancudo pôs-se atrás de Miguelti – não devia esta partida ser algo triunfante? Mas na verdade a água invisível afogava-os já com as barbatanas de tubarões e peixes a murmurarem ameaças por entre as bolhas de oxigénio. As esfinges, se o percebiam, não o mencionavam. Miguelti escolheu o corredor ocre por concelho das esfinges – o menos errado dos caminhos que poderia escolher. O director ia atrás, o mágico olhou uma última vez para a mulher tesuda de barba, que chorava – tesuda, tesuda, com um grande corpo. Mas de barba. – e o extintor transmutador ia numa das suas mãos. O cão foi também, afirmando que não tinha nada de melhor para fazer e que estava farto de passar os dias à espera e qualquer coisa. Encabeçou ele o percurso, num trote vagaroso, o palhaço de ferrugem arrastava os pés de mãos nos bolsos, ao lado de Miguelti.
- Sai daqui. Parte: no final do túnel encontrarás também o fim da Mina e o caminho que te levará à tua entrada. E por aí sairás.
O grupo enfiou-se no túnel horizontal de cor ocre, enquanto que as esfinges voaram para longe, desaparecerem ou se esfumaram, deixando para trás mais uma qualquer secção da Mina, que –
E partiram.
Miguelti, Parte 9
quarta-feira, 2 de junho de 2010
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